quarta-feira, 4 de maio de 2011

SAIU NA REVISTA ECLÉSIA




Haitiano é resgatado após passar duas semanas soterrado  Foto: AFP


Mulher carrega sacola com comida na cabeça, enquanto passa por destroços, em Porto Príncipe  Foto: AFP

Crianças se refrescam na água que jorra de um cano quebrado  Foto: AP
Olhar evangélico no meio do caos



O capitão Ivan Xavier, capelão do Exército brasileiro, fala de seu trabalho na missão da ONU no Haiti



Desde junho deste ano, as Forças Armadas brasileiras vêm cumprindo sua maior missão no exterior desde a Segunda Guerra Mundial: é a Brigada de Força e Paz no Haiti, que mantém cerca de 1,2 mil militares na coalizão internacional formada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para socorrer o pequeno país caribenho. O Haiti entrou em convulsão em fevereiro passado, quando o então presidente Jean-Bertrand Aristide, acusado de fraudar as eleições que o puseram no poder, foi forçado a renunciar por grupos rebeldes. De lá para cá, aquela que é considerada a nação mais miserável do continente americano está imersa no caos político e social. O Estado, dirigido por um governo de transição, praticamente faliu – há fome e desemprego generalizados, as redes públicas de saúde e educação não funcionam e grupos armados contrários ao governo provisório promovem ações de banditismo na capital, Porto Príncipe, e nas principais cidades haitianas.

Este ano de 2004, particularmente, tem sido cruel com o sofrido povo do Haiti – para piorar a situação, tempestades fortíssimas devastaram parte da ilha em maio. A situação fez a ONU aprovar, em regime de urgência, o envio de uma Missão Internacional de Estabilização, visando levar ajuda humanitária e de socorro institucional. O contingente brasileiro de capacetes azuis – marca das missões do gênero – é o maior dentre as forças multinacionais e carrega a responsabilidade pelo comando da operação, que deve durar até maio do ano que vem. Ao todo, 6 mil militares estrangeiros atuam hoje no país. O envio de tropas do Exército, da Marinha e da Força Aérea faz parte da política externa do governo Lula, que tem valorizado o envolvimento com as grandes causas mundiais e a solidariedade a outros povos do Terceiro Mundo – de olho, inclusive, no reconhecimento internacional necessário que o Brasil pleiteie uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Embora não seja uma situação de guerra declarada – o contingente está lá para garantir a ordem e o retorno à normalidade institucional –, a operação, evidentemente, é perigosa. Já houve confrontos, até agora sem mortos do lado brasileiro, entre as tropas e grupos rebeldes. É o que conta o capitão Ivan Xavier, pastor e capelão evangélico da Brigada Haiti. Em entrevista exclusiva a ECLÉSIA, ele falou, de Porto Príncipe, sobre a situação do país, a rotina dos militares brasileiros e suas atividades religiosas. “O panorama atual é crítico”, descreve o oficial. “O país está impossibilitado de atender as demandas mínimas da população.” De acordo com Xavier, há até montanhas de lixo pelas ruas. A prometida ajuda internacional, da ordem de US$ 2 bilhões, ainda não foi liberada. As forças da ONU, segundo ele, são fundamentais para apoiar o Estado, enfraquecido pela escalada de violência e o conflito entre os vários grupos da sociedade. “O que se vê no Haiti, entretanto, não é diferente do que se vê em qualquer outro lugar do mundo”, enfatiza o capitão. “Em sua natureza intrínseca, o homem é sempre o mesmo – o que muda é apenas a face do problema. Nós, que cremos na Palavra de Deus, temos a visão de que uma mudança significativa na vida dos haitianos tem que incluir previamente o encontro das pessoas com Cristo e o seu Evangelho.”

Além da tropa brasileira, as forças da ONU formam um contingente multinacional com soldados de países como Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Uruguai, Paraguai, Peru, Canadá, Espanha, França, China, Portugal, Jordânia e Paquistão. Até nações asiáticas pequenas e pobres, como Nepal e Sri Lanka, enviaram militares. No comando de todos está o general brasileiro Augusto Heleno Pereira. Há um rodízio que permite a substituição gradativa do contingente, a cada seis meses. O próprio Xavier já retornou, em outubro, para rever a família. “Fiquei 20 dias e voltei para o Haiti. Devo ficar aqui até dezembro, quando virá novo grupo nos substituir”, informa. Pelos levantamentos do censo religioso do Setor de Pessoal da Brigada Haiti, estão no país 1.198 militares brasileiros, entre os quais os católicos são a maioria, com 71% do contingente. Evangélicos são 21% – 248, ao todo –, e há ainda 8% de espiritualistas e adeptos de outras confissões. Além de Ivan Xavier, a tropa conta com o trabalho do major João Justino Ferreira, capelão católico.



Apoio espiritual – Ivan Xavier, de 47 anos, converteu-se ao Evangelho aos 19, através do testemunho de colegas da escola. Logo, passou a freqüentar a Igreja Batista, onde foi batizado. Ele ingressou no Batalhão de Guardas do Exército em 1978. De lá, foi para a Escola de Especialistas da Aeronáutica, onde formou-se sargento. Permaneceu 15 anos na Força Aérea, trabalhando como mecânico de sistemas de armamento em aeronaves. Até que, em 1995, surgiu a oportunidade de unir seu conhecimento profissional e sua fé: “Por preencher as condições, prestei concurso para o Quadro de Capelães militares do Exército”, conta. É que Ivan também é pastor, graduado em teologia pelo Seminário Batista do Sul, no Rio de Janeiro. Atualmente, ele pastoreia a Igreja Batista Buriti, em Campo Grande (MS), onde mora com a mulher e os três filhos. Lá, é capitão do Comando Militar do Oeste e 9ª Divisão do Exército.

“O capelão militar promove a assistência religiosa e moral da tropa”, explica. “Como oficial de Estado-Maior especial, ele assessora o comando no que se refere ao bem-estar espiritual dos militares e de suas famílias.” Em uma missão como a do Haiti, o objetivo da capelania é equipar o combatente com a Palavra de Deus como forma de minorar as tensões do serviço e da distância da família. “É uma experiência pastoral muito rica. Aqui eu posso aconselhar e cooperar na solução dos problemas na medida em que as coisas acontecem”, destaca o capitão. Uma de suas tarefas é percorrer cada Comando realizando cultos e palestras. “Vários companheiros de farda não-evangélicos participam das reuniões, onde a freqüência é voluntária, sem qualquer imposição do capelão ou do Comando. Aqui, nossos cultos não diferem daqueles que acontecem em nossas igrejas – quem se sente tocado pelo Espírito Santo ao ouvir o Evangelho e deseja aceitar a Cristo como Salvador têm tido a liberdade de fazê-lo.”

Xavier procura direcionar suas pregações e palestras para uma abordagem de temas característicos da vida do militar. “Nos meus encontros com a tropa, procuro falar de necessidades específicas e situações vivenciadas por nós em serviço. Trata-se de uma aplicação prática das verdades bíblicas.” Ao contrário do que se poderia imaginar, o Haiti, segundo o capitão, é um país receptivo ao Evangelho. Ele e outros crentes da missão têm participado de cultos reunindo centenas de habitantes locais. A Brigada Brasileira tem apoiado até concentrações evangelísticas. “A promoção desses eventos é feita pela liderança evangélica haitiana e nosso apoio geralmente consiste em montagem do som, empréstimo de geradores, distribuição de água e suporte técnico.” Nessas ocasiões, os brasileiros têm a oportunidade de dar testemunhos e até pregar.

“Existem muitas igrejas evangélicas no país”, acrescenta o capelão. “Chego até a pensar que o apoio que está chegando aqui através da ONU é fruto de muita oração e clamor a Deus.” Até mesmo a antiga prática do vodu – rito ocultista com raízes na feitiçaria –, uma das práticas comumente associadas ao povo haitiano, está, nas palavras do capelão, perdendo força. Há bastante abertura para o evangelismo. “As agências missionárias deveriam enviar obreiros”, defende.



Identidade – A presença do Brasil em missões dessa natureza é sempre bem-vinda. Além da simpatia que a maioria dos povos sente em relação aos brasileiros, há elementos da cultura nacional que se assemelham bastante ao contexto haitiano – como a influência do elemento negro e, sobretudo, o amor ao futebol. Como parte da estratégia de aproximação, o governo brasileiro solicitou à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a realização de um amistoso da seleção em Porto Príncipe, com a presença do presidente Lula e autoridades dos dois países. O chamado Jogo da Paz, disputado entre Brasil e Haiti no dia 18 de agosto, foi uma festa que parou o país e interrompeu até as hostilidades entre grupos rivais. Craques como Kaká, Ronaldo, Roberto Carlos e Ronaldinho Gaúcho foram reverenciados como ídolos pelas ruas da cidade. Apesar da goleada aplicada sobre o time da casa (o jogo terminou em 6 a 0 para o Brasil), ninguém se importou com o resultado. Cada gol brasileiro levou a torcida local ao delírio.

“As diversas missões de paz de que nossas Forças Armadas têm participado demonstram que o soldado brasileiro tem uma aptidão muito acima da média para operações militares sob a égide da ONU”, continua o capitão Xavier. “Posso garantir que o que existe no peito dos nossos homens é o orgulho, a coragem e a determinação de bem cumprir a missão, ajudando um povo amigo e elevando o nome do Brasil no contexto das nações.” Ele destaca que o contato com a população civil é sempre amistoso. “Temos oficiais e sargentos que atuam como intérpretes e tradutores contratados pela ONU que falam francês e creollo, as línguas do país.”

Apesar disso, reconhece Xavier, em toda ação militar existe um componente de risco. “As patrulhas saem e ficam expostas. Para minimizar os possíveis danos, usamos armamentos, coletes e capacetes à prova de balas, tanques blindados e apoio do serviço de inteligência, além de muito treinamento e exercícios para lidar com situações extremas.” O capitão explica que os integrantes da Brigada de Força de Paz agem dentro de procedimentos padrões, as chamadas Regras de Engajamento. “Aqui, em Porto Príncipe, a instabilidade social e a ação dos grupos rebeldes demandam operações em conjunto com a Polícia Nacional do Haiti e outras ações militares que possam garantir a tranqüilidade da população. Mas, como diz o general Heleno, nosso comandante, não estamos aqui para uma guerra. Não temos inimigos. Viemos ajudar o Haiti.”

O pastor Ivan Xavier demonstra bastante lucidez quanto ao papel do militar crente: “As Forças Armadas e as polícias são instituições que zelam pelo bem-estar de toda a sociedade, sendo necessárias em um mundo imperfeito, pecador e bem diferente daquele que foi idealizado pelo Criador.” Por isso mesmo, ele não vê qualquer contradição entre a fé e o trabalho do militar. “Aliás, acho até que essas funções são desempenhadas melhor por aqueles que seguem o mandamento divino de não matar. Se o evangélico fardado chegar a esse ponto, como um ato extremo e imperativo das suas funções, só o fará depois que se esgotarem todos os mecanismos de negociação possíveis e dentro do estrito cumprimento das leis que foram criadas pela própria sociedade para se defender, de modo que as pessoas de bem possam continuar tendo o direito de viver em paz e liberdade.”

“Nosso maior objetivo”, continua, “é conciliar a necessidade de se promover a paz sem o uso letal das armas e do aparato militar. Em ambientes instáveis e de riscos como o existente no Haiti, esse é um desafio que se apresenta a cada instante.” Para o militar, o contingente brasileiro foi muito bem-sucedido nesse aspecto. “Reconhecemos, entretanto, que, além de todo o preparo da tropa, existe a mão de Deus nos conduzindo em nossas ações. Esse detalhe foi reconhecido pelo Comando todas as vezes em que nos reunimos para celebrar os cultos em ações de graças. Nossa verdadeira proteção vem do Senhor.”



Combatente da fé

O primeiro capelão militar evangélico do Brasil teve pela frente uma missão arriscadíssima: prestar assistência espiritual aos soldados brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial. Coube ao pastor batista João Filson Soren a incumbência de organizar a capelania protestante da Força Expedicionária Brasileira que lutou na Itália entre 1944 e 1945. Ele passou 341 dias na Europa, na fase mais aguda do conflito, quando os aliados fizeram a ofensiva final contra o nazi-fascismo. Ao todo, o Brasil enviou 25 mil expedicionários – os “pracinhas”, como eram carinhosamente chamados. Cerca de dois mil deles morreram nos combates encarniçados que marcaram as conquistas de Monte Castelo e Montese. João Soren foi pastor-titular da Primeira Igreja Batista (PIB) do Rio de Janeiro durante 50 anos. Quando foi enviado à Itália, o capelão entregou o cargo, mas a congregação recusou-se a eleger outro pastor. Então, foi através de cartas enviadas do front e lidas durante os cultos que ele manteve o cuidado com suas ovelhas. De volta ao país, reassumiu o púlpito da PIB, onde permaneceu até ser jubilado, em 1985. Durante todo o seu ministério, Soren foi uma referência para os batistas brasileiros. O veterano morreu em janeiro de 2002, aos 93 anos de idade. (Carlos Fernandes)



Claiton Cesar

Jornalista da revista Eclésia


Barcos trazem mantimentos para a população em Porto Príncipe  Foto: AFP


Haitiano corre ao lado de uma igreja em chamas, danificada pelo terremoto  Foto: AFP


Soldados americanos carregam doações de garrafas de água  Foto: AFP

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